Pouco depois que uma empresa chinesa foi inaugurada nas proximidades, os funcionários da empresa malaia Kemikon encontraram folhas de papel presas nos para-brisas de seus carros.
Os panfletos eram da Fengshi Metal Technology, uma concorrente com sede em Suzhou, na China, que opera em áreas de fabricação de peças semicondutoras semelhantes. Eles prometiam salários 30% acima da média do mercado e outras “oportunidades únicas”, como viagens ao exterior e refeições gratuitas.
A Fengshi é uma das dezenas de empresas que se estabeleceram em Penang —um estado na costa noroeste da Malásia mais conhecido por suas praias, culinária e atmosfera descontraída— nos últimos 18 meses. Isso inclui as gigantes americanas de chips Micron e Intel e as europeias AMS Osram e Infineon.
À medida que empresas ao redor do mundo buscam uma alternativa à China para se protegerem de interrupções geopolíticas —uma estratégia conhecida como “China mais um”—, a Malásia está se tornando um surpreendente destino de investimentos.
O país tem uma história de 50 anos na “parte traseira” da cadeia de suprimentos de fabricação de semicondutores: empacotamento, montagem e testagem de chips. Mas também tem ambições de avançar para a dianteira de uma indústria global de US$ 520 bilhões que alimenta desde televisores até smartphones e veículos elétricos. Isso incluiria atividades de maior valor, como fabricar os “wafers” e projetar circuitos integrados.
O aumento de restrições dos EUA à tecnologia chinesa, especialmente para fabricação de chips, são uma das principais razões para o apelo da Malásia, segundo grupos do setor.
Os Estados Unidos estão disputando a supremacia tecnológica global com a China e têm contado com o apoio de aliados na Europa e na Ásia ao restringir as vendas de chips mais avançados e equipamentos de fabricação para seu rival geopolítico.
“É uma corrida. Não são apenas empresas chinesas [se estabelecendo em Penang]. São coreanas, japonesas e ocidentais”, diz Marcel Wismer, diretor executivo da Kemikon. “E tudo isso está relacionado à guerra tecnológica entre os EUA e a China.”
A Kemikon fabrica peças, como estruturas de máquinas, para clientes como LAM Research e Applied Materials nos EUA. Fengshi não é a única empresa chinesa tentando atrair seus funcionários, diz Wismer.
Ele acrescenta que os principais fabricantes ocidentais de equipamentos semicondutores não podem vender seus equipamentos mais avançados para a China devido às restrições dos EUA. “Mas a outra parte da história é que todos esses fabricantes compram peças de empresas chinesas”, explica.
“Então eles dizem aos seus fornecedores: se vocês não saírem [da China], teremos que encontrar novos. As empresas chinesas são então obrigadas a se mudar ou expandir para lugares como o Sudeste Asiático para não perder negócios. É aí que Penang entra.”
O investimento está em alta. O estado atraiu US$ 12,8 bilhões (cerca de R$ 63 bilhões) em investimento estrangeiro direto em 2023, mais do que a soma do recebido entre 2013 e 2020.
Desenvolver o setor de semicondutores e a força de trabalho da Malásia para essa etapa de maior valor é um “objetivo crítico”, diz o primeiro-ministro do país, Anwar Ibrahim, em entrevista ao Financial Times.
A Malásia está em “um momento muito crítico, de ruptura em nossa história”, diz ele, enquanto olha para um dos pisos da fábrica de Penang. Natural do estado, ele admite se orgulhar pessoalmente desse boom.
Mas a narrativa tem vulnerabilidades importantes, que incluem uma grave escassez de mão de obra especializada e a falha em criar um campeão nacional de semicondutores que possa atrair outros.
Outra é a política. Washington já pressionou Kuala Lumpur por “inclinar-se” para Pequim sob Anwar, que assumiu o cargo em 2022.
Os EUA, o maior contribuinte para o índice de investimento estrangeiro da Malásia, podem impor ainda mais sanções à tecnologia chinesa; alguns analistas e grupos do setor temem que possam restringir produtos e equipamentos construídos na Malásia pelo fluxo de novas empresas chinesas.
Mas Gautam Puntambekar, executivo para o país do Bank of America, diz que “quando se fala em semicondutores, a Malásia é inevitavelmente parte da conversa”.
“A diversificação da cadeia de suprimentos da China continua sendo um foco principal para as empresas”, diz ele, acrescentando que isso só se acelerará antes das eleições de 2024 e torna Penang “um dos pontos mais interessantes da Ásia no momento”.
Em 1972, um campo de arroz enlameado em Penang se tornou a primeira instalação de produção fora dos EUA para a Intel.
Atraídas por uma nova zona de livre comércio e um porto movimentado no Estreito de Malaca, a Intel, ao lado da AMD, Renesas (ex-Hitachi), Keysight Technologies (ex-HP) e várias outras multinacionais de tecnologia foram pioneiras do que costumava ser chamado de “Vale do Silício do Oriente”.
A Malásia se tornou uma máquina azeitada no empacotamento, montagem e testagem de chips, até recentemente considerada uma parte necessária, mas de baixo nível e intensiva em mão de obra da cadeia de suprimentos de fabricação de semicondutores.
Já é o sexto maior exportador de semicondutores do mundo e detém 13% do mercado global de empacotamento, montagem e teste de semicondutores. É a origem de 20% das importações anuais de semicondutores dos EUA, mais do que Taiwan, Japão ou Coreia do Sul. Mas isso nunca foi o impulso para avançar na cadeia de valor de semicondutores —até agora.
A demanda por chips cada vez mais potentes em setores como veículos elétricos e inteligência artificial significa que o chamado empacotamento avançado (advanced packaging, em inglês) —que conecta chips às suas placas de circuito e os protege da contaminação— é considerado fundamental para melhorar o desempenho dos produtos.
Um processo anteriormente intensivo em mão de obra agora muitas vezes ocorre em fábricas altamente automatizadas.
A Intel, maior fabricante de chips do mundo em receita, está investindo US$ 7 bilhões (quase R$ 35 bilhões) em novas instalações na Malásia, incluindo uma planta de empacotamento avançado “3D” que deve ser concluída ainda este ano. A tecnologia de ponta empilha chips uns sobre os outros para melhorar o desempenho.
A empresa também está construindo outra fábrica de montagem e teste de chips em Kulim, que faz fronteira com Penang. “Crescemos de 100 pessoas em montagem, teste, design [e agora] para empacotamento avançado e para 15 mil pessoas”, diz Eric Chan, vice-presidente da Intel baseado em Penang.
O ecossistema, a conectividade e a infraestrutura existentes na Malásia para chips foram parte do apelo, diz ele.
A Micron e a alemã Infineon também estão em modo de expansão. A primeira, sediada nos EUA, lançou no ano passado sua segunda instalação para montagem e teste em Penang, enquanto a Infineon, uma ex-subsidiária do conglomerado de engenharia alemão Siemens, disse que gastaria até US$ 5,4 bilhões para expansão nos próximos cinco anos. Ela está construindo a maior fábrica do mundo para os chips de carbeto de silício, amplamente utilizados pelas montadoras de veículos elétricos.
David Lacey, executivo da AMS Osram baseado em Penang, diz que a diversificação da cadeia de suprimentos começou com a pandemia, mas “o pano de fundo geopolítico está levando as pessoas a encontrar locais e fontes alternativas”.
O grupo com sede na Suíça foi uma das primeiras empresas estrangeiras a se estabelecer em Penang, e ainda está investindo lá.
Zafrul Aziz, ministro da Malásia para investimento, comércio e indústria e presidente do grupo de trabalho nacional de semicondutores lançado em fevereiro, diz que ficou surpreso com o quanto as fábricas em Penang se tornaram mais produtivas e automatizadas.
“Vou [aos EUA] agora e as máquinas e ferramentas usadas para fabricar os chips são da Malásia.”
Há um efeito cascata para as startups. A Oppstar, uma das poucas empresas da Malásia especializadas em design de circuitos integrados —a dianteira da cadeia de suprimentos— foi listada na bolsa de Kuala Lumpur no ano passado.
Seu cofundador, Tan Chun Chiat, diz que a Malásia tem uma “oportunidade de ouro” para explorar. “Para os próximos 10 anos ou mais, acho que veremos muito mais atividade por causa da ineficiência criada pela guerra comercial [EUA-China]”.
A corrida de investimentos pegou até mesmo o governo pró-negócios de Penang de surpresa. A visita de Anwar, o primeiro-ministro, durante o ano novo lunar coincidiu com mais uma cerimônia de lançamento em uma fábrica para atender à crescente demanda.
O governo de Penang é dono de grande parte das terras no estado, um benefício para seus cofres. Loo Lee Lian, diretor executivo do Invest Penang, o braço sem fins lucrativos do governo estadual, diz que a organização teve que se tornar “mais seletiva” em relação a quem entra devido à pressão sobre as terras. O desenvolvimento se espalhou para os estados vizinhos de Kedah e Perak.
Os preços das terras industriais subiram até 70% desde 2022, de acordo com Mark Saw, diretor executivo da Knight Frank Penang, uma consultoria imobiliária. Levando em conta todo o Sudeste Asiático, o crescimento dos preços de imóveis residenciais em Penang no primeiro semestre de 2023 foi o segundo maior, perdendo apenas para Singapura, de acordo com a Knight Frank.
Os engarrafamentos se tornaram uma característica regular; Ramu Iyer, vice-presidente da Micron Malaysia, brinca que apesar de morar a apenas 14 km de sua fábrica, ele passa uma hora no trânsito para chegar em casa todos os dias.
A escassez de engenheiros no país também se tornou mais aguda. Zafrul, o ministro do comércio, diz que o setor elétrico e eletrônico requer 50 mil engenheiros, mas apenas 5.000 estudantes de engenharia se formam por ano —e muitos deles atravessam a ponte para Singapura, onde recebem salários maiores.
Os salários de engenharia, especialmente para recém-formados, ainda estão abaixo da maioria dos outros setores profissionais na Malásia, e os especialistas dizem que há uma falta de expertise crucial para avançar para a dianteira da cadeia de suprimentos.
Tan Eng Kee, cuja empresa de automação, Greatech Technology, recebeu Anwar em sua visita a Penang, diz que o governo precisa ser “mais focado” em cultivar campeões nacionais e aumentar os salários.
“Em Taiwan e na Coreia do Sul, eles têm orgulho de trabalhar para empresas nacionais como TSMC, Pegatron ou Samsung”, diz o diretor executivo.
Historicamente, houve uma falta de vontade política para oferecer os incentivos direcionados necessários para atrair as grandes empresas de semicondutores, conhecidas como fabs, e a Malásia não tem um campeão nacional no setor como a TSMC de Taiwan.
Quinto primeiro-ministro da Malásia em cinco anos, Anwar reconhece um grau de “complacência” no passado quando se tratava de impulsionar a indústria de semicondutores após o boom inicial nas décadas de 1970 e 1980. Mas o setor é agora um alvo chave de seu plano industrial enquanto ele se concentra em reviver a economia.
Anwar diz que muitos dos subsídios globais são excessivos, mas pediu ao ministério do comércio para analisar o que outros países estão oferecendo para se manter competitivos. “Estamos recebendo investimentos suficientes. Estou aqui [em Penang] para abrir uma nova [fábrica]”, acrescenta.
Muito disso se deve ao surgimento de novos players em Penang: as empresas chinesas.
Desde que os EUA começaram a impor restrições comerciais à tecnologia chinesa sob o governo Trump, e especialmente desde que foram endurecidas pelo atual presidente dos EUA, Joe Biden, Penang começou a ver um fluxo de interesse de grupos como Fengshi, de acordo com Loo, da InvestPenang.
Muitas dessas empresas têm fornecedores globais ou clientes ocidentais que estão se protegendo contra futuras restrições dos EUA, diz ela.
A InvestPenang estima que agora existam 55 empresas da China em Penang operando na manufatura, principalmente em semicondutores. Isso se compara a apenas 16 antes do início das restrições americanas.
As restrições dos EUA atualmente não se aplicam aos serviços avançados de empacotamento de chips, mas as empresas chinesas temem possíveis futuras restrições, diz um analista baseado em Hong Kong de uma empresa chinesa que pediu para permanecer anônimo. Alguns estão se protegendo ao se associar com empresas da Malásia para montar uma parte de seus chips de alta qualidade, acrescentou.
Uma antiga unidade da Huawei, xFusion, está se associando ao operador local NationGate para fabricar servidores de unidades de processamento gráfico (GPUs, na sigla em inglês) em Penang.
Em alguns casos, empresas chinesas e americanas até trabalham juntas. A empresa de empacotamento e teste TongFu Microelectronics expandiu sua instalação em Penang em parceria com o grupo americano AMD em 2022.
“Quando o país de origem muda para algum lugar como a Malásia, vejo que as empresas também conseguem evitar tarifas impostas pelos EUA à China”, acrescenta Seri Wong Siew Hai, presidente da Associação da Indústria de Semicondutores da Malásia.
A empresa sul-coreana Simmtech, que fabrica os substratos nos quais os circuitos integrados são gravados, abriu uma nova fábrica de fabricação avançada em Penang em 2022 e, em questão de meses, anunciou que aceleraria a expansão da instalação. Alguns de seus fornecedores chineses a seguiram para Penang e estabeleceram operações lá, diz uma pessoa familiarizada com as operações da empresa.
A maioria dos players chineses ainda está na parte de montagem e teste da cadeia de suprimentos. Mas os analistas dizem que se empresas de setores mais sensíveis e de maior valor começarem a se estabelecer, isso pode atrair maior escrutínio.
A StarFive Technology, com sede em Xangai, é líder em RISC-V (“risk five”), uma tecnologia de código aberto usada na China que concorre com empresas como a britânica Arm. Ela está construindo uma instalação em Penang, mas alguns legisladores americanos já querem restringir as empresas americanas de colaborar em projetos RISC-V.
A questão será se os americanos continuarão ampliando seus critérios, diz Wong da MSIA —por exemplo, colocando produtos e equipamentos feitos na Malásia na lista restrita.
“Se eles continuarem a expandir suas definições e sanções, [a Malásia] pode estar olhando para uma história diferente.”
Zafrul, o ministro do comércio, concorda que há uma dúvida sobre o que mais os EUA poderiam fazer. “Mas mais restrições provavelmente serão contraproducentes, especialmente considerando a presença significativa de empresas americanas na Malásia”, acrescenta.
Enquanto isso, a Malásia deve se concentrar agressivamente em atrair investimentos de alto nível ou “perder espaço” para rivais regionais, diz Zafrul.
Vietnã e Índia estão construindo suas próprias indústrias de semicondutores, muitas vezes com incentivos estatais muito maiores e muitos engenheiros mais qualificados à disposição.
Seu senso de urgência é justificado. A Malásia pode ter recebido investimentos recordes nos últimos anos, mas ainda falta o grande prêmio: uma fábrica de ponta. De cerca de 80 instalações desse tipo que devem ser construídas em todo o mundo nos próximos anos, nenhuma está na Malásia.
“Estou otimista de que vamos atrair mais de uma”, diz Zafrul. “Só precisamos de uma para iniciar uma onda.”