O estúdio brasileiro Rogue Snail, que lançou o jogo “Relic Hunters Legend” em parceria com a Netflix após seis anos de desenvolvimento, demitiu 17 funcionários no mês seguinte à sua publicação.
Fundado pelo carioca Marcos Venturelli em 2014, não faltavam indícios de que o estúdio estava vivendo dias de glória, com contratos com grandes empresas norte-americanas e o anúncio de seu jogo no Game Awards, equivalente ao Oscar dos videogames, com mais de 2 milhões de visualizações no YouTube.
Dentro da empresa, contudo, o clima era de apreensão. No início de 2022, quando “Relic Hunters Legend” já entrava em seu quinto ano de desenvolvimento, o estúdio passou a negociar um novo projeto secreto com uma grande publicadora internacional.
Conforme os acordos avançaram, novas contratações foram feitas, levando o estúdio a bater a marca de 50 funcionários –algo incomum para desenvolvedoras de games brasileiras.
Contudo, em março de 2023, Venturelli e seus sócios foram pegos de surpresa com o cancelamento súbito do projeto e o corte de fundos à Rogue Snail.
Paralelamente, gigantes da indústria global começavam a realizar demissões em massa, como Take-Two, Amazon (tanto em sua plataforma de streaming Twitch quanto em sua divisão de games), Riot, Microsoft e Electronic Arts –só nesta última, 800 perderam seus empregos no começo do ano.
Com o corte dos recursos necessários para sustentar o crescimento acelerado, a pressão recaiu sobre a equipe de desenvolvimento de “Relic Hunters Legend”, que exigiria um lançamento estrondoso para cobrir as despesas da companhia.
“Foi como trabalhar com uma arma apontada para a cabeça de todo mundo”, afirma Venturelli, que considera 2023 o ano mais difícil da história do estúdio.
Lançado em setembro, o jogo teve uma recepção morna, resultando em uma demissão em massa, feita, de acordo com Venturelli, com transparência e diálogo com os funcionários. “A gente fez essa manobra para estabilizar a situação”, afirma.
Quando “Relic Hunters Legend” começou a ser desenvolvido, em 2016, “Destiny”, jogo que o inspirou, ainda era popular.
Porém, no decorrer do longo período de desenvolvimento, outros sucessos comerciais direcionaram o setor para diferentes gêneros.
“Essa é a dificuldade de fazer as coisas em desvantagem”, explica Venturelli. “Se a gente já tivesse recurso suficiente logo no início, teríamos terminado muito antes. A gente tem que montar o avião enquanto ele já está voando.”
O estúdio mineiro Long Hat House, que teve sucesso internacional com seu elogiado metroidvania (subgênero de ação inspirado em “Metroid” e “Castlevania”) “Dandara”, não lidou com demissões, até pelo seu tamanho reduzido –conta com seis pessoas–, mas está com dificuldades de financiar seu novo projeto, em desenvolvimento há dois anos. “Achávamos que depois de ‘Dandara’ seria mais fácil conseguir recursos”, diz Lucas Mattos, cofundador.
O novo jogo, um RPG moderno com temas atuais, inspirado na cultura urbana de metrópoles brasileiras, ainda não anunciado oficialmente, foi recusado por publicadoras internacionais.
Com a indisponibilidade do capital estrangeiro, o jeito foi recorrer aos editais da Lei Paulo Gustavo. Contudo, com uma oferta de apenas R$ 300 mil para a elaboração de um jogo completo, valor considerado baixo para os padrões do setor, a equipe teve que inscrever um projeto menor e mais simples —um retrocesso em relação ao jogo que vinham desenvolvendo e ao próprio “Dandara”, lançado em 2018.
Sem novos financiamentos, o estúdio se mantém com o lucro das vendas de “Dandara”. “A gente segurou para não expandir, não aumentar salário e nossa própria qualidade de vida”, conta Lucas. “Se tivéssemos seguido o caminho padrão e expandido, com capital estrangeiro, hoje não conseguiríamos mais.”
Na contramão, a desenvolvedora brasileira Pocket Trap, que já teve desenho animado para TV baseado em um de seus jogos, “Ninjin”, conseguiu fechar um acordo com uma publicadora em 2023 para seu novo projeto, mas não sem atribulações: foi preciso o contato com mais de 20 publicadoras estrangeiras.
Fecharam com uma menor que a empresa que financiou seu último jogo, “Dodgeball Academia”. “Não é só qualidade, diversão e carisma que conta”, disse Henrique Alonso, cofundador do estúdio. “Eles querem que o jogo se enquadre no que eles esperam como um investimento de baixo risco, o que é muito difícil de encontrar em games.”
Segundo Carolina Caravana, vice-presidente da Abragames (Associação Brasileira de Desenvolvedoras de Jogos Digitais), a atual crise na indústria de games global é reflexo da redução de investimentos no setor após a pandemia da Covid-19. “As pessoas voltam a ter outras opções de lazer e entretenimento presenciais e passam a ter menos tempo livre em casa para jogar.”
Neste cenário, as empresas maiores, que estavam operando de forma acelerada para atender o aumento das demandas durante o período de isolamento social, são as mais prejudicadas.
No Brasil, que tem poucos estúdios grandes e é forte em outsourcing –produção terceirizada de partes específicas de projetos grandes internacionais–, ainda não houve uma crise generalizada, explica Caravana.
Contudo, quando se trata de financiamento, a história é outra: 60% das empresas de games brasileiras são financiadas por capital privado internacional. “Se param de investir, isso também impacta a indústria do Brasil.”
O fenômeno, que atinge empresas em crescimento e com projetos de porte médio, como a Rogue Snail e Long Hat House, volta a limitar a indústria brasileira a projetos de baixo orçamento e de escopo reduzido.
Pedro Falcão, designer de narrativa e parte do conselho da Rogue Snail, acredita que a situação contribui para a fuga de cérebros, e reclama: “o mundo todo pode fazer jogos grandes e a gente não?”