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Crianças não devem ser cobaias dos smartphones – 29/03/2024 – Tec

Imagine que um vilão do James Bond decidiu alcançar a dominação mundial não com exércitos ou drones, mas através de nossos cérebros. Eles poderiam manipular nossas mentes para nos viciar em mundos de fantasia, nos virar uns contra os outros e reduzir nossa capacidade de concentração.

Inventar o smartphone faria isso. E, então, nos persuadir a dar isso para nossos filhos.

Até agora, pais que temem que esses dispositivos onipresentes tenham tornado as crianças sedentárias, distraídas e deprimidas foram intimidados por empresas poderosas, professores ingênuos e colegas.

Mães que imploram para as escolas não passarem tarefas online, que prejudicam os limites de tempo de tela, são informadas de que a tecnologia é uma “life skill” [habilidade da vida].

Pais que temem que os celulares signifiquem que seus filhos possam ser alvos de predadores e bullies em suas próprias casas recebem a resposta de que o rastreamento por GPS mantém as crianças “seguras”.

Famílias que veem como os jogos online atrapalham a aprendizagem são informadas de que isso melhora a capacidade de resolução de problemas. E é claro que parte disso é verdade.

Mas é impossível ignorar o aumento exponencial das doenças mentais na adolescência que coincidiu com a onipresença do smartphone desde o início dos anos 2010.

Em um novo livro, “The Anxious Generation” [A Geração Ansiosa], o psicólogo social Jonathan Haidt argumenta que os dispositivos inteligentes e os pais superprotetores “deformaram” os processos de desenvolvimento da infância. Ele exige que os smartphones sejam proibidos para crianças menores de 14 anos, e as redes sociais até os 16.

Até recentemente, isso teria sido considerado extremo e inaplicável. Mas a resistência está começando. O governador da Flórida, Ron DeSantis, assinou esta semana um projeto de lei para proibir menores de 14 anos no estado de terem contas em redes sociais e fazer com que as plataformas apaguem as já criadas.

Isso segue evidências de um comportamento dramaticamente melhor nas escolas depois que uma proibição total de smartphones foi imposta no ano passado no condado de Orange, na Califórnia.

Os oponentes argumentam que tais proibições são inconstitucionais e interferem nos direitos dos pais de decidir o que é melhor para seus filhos. Mas isso ignora o fato de que todos estamos presos em um problema clássico de ação coletiva.

É difícil para qualquer responsável sozinho dizer não quando todas as outras crianças estão online —e quando sair faria dela uma pária social. As crianças mais suscetíveis às características viciantes das redes sociais e aplicativos provavelmente resistirão mais.

Pesquisas mostram um apoio crescente dos pais às proibições de smartphones: no Reino Unido, uma pesquisa recente da instituição de caridade Parentkind concluiu que 77% dos pais de crianças em idade escolar primária querem uma proibição para menores de 16 anos. O Smartphone Free Childhood [Movimento por uma Infância Livre de Smartphones], liderado por pais, está ganhando força.

A China estava muito à frente em ver o perigo. Seu regulador digital anunciou no ano passado que crianças menores de 18 anos devem ser limitadas a um máximo de duas horas por dia em dispositivos inteligentes.

Os fabricantes devem limitar o uso por meio de “configurações para menores” semelhantes aos toques de recolher para os videogames em 2021. Os adolescentes chineses não podem assistir ao Douyin, a versão chinesa do TikTok, da ByteDance, por mais de 40 minutos por dia.

Enquanto isso, o TikTok ocidental introduziu um limite diário padrão de uma hora para adolescentes, mas isso é cosmético: pode ser simplesmente desativado.

O fato de a China ter sido muito mais eficaz em proteger suas crianças dos excessos da tecnologia deve fazer os legisladores ocidentais pensarem. As discussões em Washington se concentram em saber se a propriedade do TikTok o torna uma ameaça à segurança nacional.

Mas aplicativos hiperativos e algoritmos viciantes já são uma ameaça porque diminuem a estabilidade mental das crianças e sua capacidade de aprender.

Em 2022, um terço dos adolescentes americanos disseram que estavam usando pelo menos um dos aplicativos YouTube, TikTok, Instagram, Snapchat ou Facebook “quase constantemente”. Dificilmente vamos vencer a batalha com a China sobre inteligência artificial, ou qualquer outra coisa, se criarmos uma geração de zumbis.

Enquanto a China está indo atrás dos fabricantes, a Europa está focando na sala de aula. França, Itália e Holanda proibiram o uso de smartphones nas escolas; a Inglaterra este ano deu aos professores o poder de revistar bolsas e confiscar dispositivos. Mas como lidamos com a vida em casa e as férias? Aqui, nós pais temos que olhar muito para nós mesmos.

Uma coisa que os responsáveis podem controlar, sem legislação, é o uso de nossos próprios dispositivos. Não adianta pregar para seus filhos sobre os males da tecnologia enquanto verifica seu email à mesa. Dizer que “é trabalho” não funciona.

Recentemente, vi um menino sentado entediado em uma mesa em um restaurante, claramente querendo conversar, sendo ignorado por outra criança e dois adultos, todos olhando para suas telas.

Os pais de adolescentes não expressam o mesmo apoio para proibir smartphones como aqueles com crianças mais novas. Na pesquisa da Parentkind, apenas 36% daqueles com filhos em idade escolar secundária eram a favor.

Eu me pergunto se não buscar mais seus filhos na escola significa querer saber onde eles estão ou se temem as consequências de cortar o vício. Uma das qualidades boas, mas perigosas, dos dispositivos inteligentes é o quão úteis eles se tornaram para distrair as crianças quando os pais precisam se concentrar. Em muitas famílias, especialmente pós-pandemia, isso se tornou um hábito.

Nós nos precipitamos em uma distopia de “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, onde os livros são vistos como perigosos e as pessoas se isolam em mundos de fantasia através das telas.

O Partido Comunista Chinês e alguns executivos de tecnologia já estão protegendo seus filhos dessa maldição. É hora do resto de nós acordar e parar o experimento descontrolado das big techs nesta geração.

Visto primeiro na Folha de São Paulo

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