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Cientistas usam IA para indicar autoria de obras de arte – 23/02/2024 – Tec

Exposta no Museu do Prado, em Madri, a “Madona da Rosa” do pintor renascentista Rafael gera desconfiança há anos por dois elementos: o rosto do personagem bíblico José, esposo de Maria, e a flor na base do quadro. Historiadores e diletantes contestam a autoria da tela.

Em 2023, um modelo de inteligência artificial (IA) apontou que a face do pai adotivo de Jesus não foi pintada por Rafael. A flor, por sua vez, seria uma obra do artista, segundo a IA desenvolvida na Inglaterra.

Esse prognóstico tem 98% de chance de acerto, de acordo com os criadores do modelo, uma equipe liderada pelo cientista da computação Hassan Ugail. “Fizemos testes de validação cruzada para garantir que os resultados fossem robustos”, diz Ugail, que é professor da Northwestern University.

O historiador da arte Jürg Meyer zur Capellen, autor de um catálogo crítico da obra de Rafael, foi o primeiro a contestar a autoria de partes do quadro Madona da Rosa, cuja produção ocorreu entre 1518 e 1520, de acordo com datações de carbono. Ele atribuiu a autoria dos trechos diferentes ao discípulo Giulio Romano.

Rafael era tão popular no começo do século 16 que foi convidado a pintar diversos murais no Vaticano. O primeiro deles, a “Escola de Atenas”, feito entre 1509 e 1510, alçou o pintor à fama. As últimas obras, de 1513 a 1517, assim como outras telas, foram finalizadas por aprendizes do renascentista.

A princípio, a tecnologia desenvolvida sob chefia de Ugail terá foco na obra de Rafael, sobre a qual há controvérsias.

O pesquisador liderou uma equipe multidisciplinar com cientistas baseados nos EUA e na Inglaterra para treinar o modelo. No esforço, participaram, além do especialista em computação gráfica, um físico, um químico, um historiador e um pintor e galerista.

Ao fim, esse grupo chegou a um modelo de inteligência artificial que, segundo Ugail, considera padrões, pinceladas, paleta de cores e composição de elementos característicos da arte de Rafael.

Em janeiro de 2023, a tecnologia ainda em fase inicial de desenvolvimento já havia atribuído a Rafael a autoria da tela “de Brécy Tondo”, até então sem origem reconhecida.

O veredito da inteligência artificial pode, porém, ser apenas mais um argumento na investigação minuciosa necessária para apontar a autoria de uma obra.

Na ausência de provas cabais da origem de determinada tela, é necessário convencer toda a comunidade das artes plásticas a chegar a um consenso.

A tela “Salvator Mundi”, vendida em 2017 por US$ 450 milhões após atribuição de autoria a Leonardo Da Vinci, até hoje tem sua origem contestada por especialistas. “Da Vinci jamais faria essa mão monótona”, disse o ex-consultor do Louvre Ben Lewis, em entrevista à Folha.

O galerista Thiago Gomide, da Gomide&CO, afirma que a forma mais objetiva de autenticar uma tela é levantar todos os lugares por onde o quadro passou até chegar ao ateliê do artista. Isso fica mais difícil quanto mais antiga for a obra.

A artista visual e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Giselle Beiguelman lembra que as produções anteriores ao estabelecimento do direito autoral, durante o século 18 na Inglaterra, frequentemente não tiveram o mesmo cuidado de atribuição de autoria do que produções recentes.

Para Beiguelman, o uso da inteligência artificial serve como um recurso útil, mas limitado.

“O modelo de IA pode apreender elementos não detectáveis pelo olho humano”, diz a professora. “Por outro lado, uma obra de um mesmo autor pode ganhar características diferentes ao longo dos anos a depender de como for conservada”, acrescenta. As tintas, por exemplo, podem sofrer diferentes graus de oxidação.

Por isso, seria necessária uma base muito robusta de dados para dar conta dessas nuances. Essa, com frequência, não é a realidade no conjunto de obras do período renascentista ou barroco, quando a produção de uma única tela podia levar anos.

O catálogo de Rafael usado para treinar o modelo de IA inglês, por exemplo, tinha cem quadros. No campo do aprendizado profundo com inteligência artificial, é comum usar bases com milhões ou bilhões de dados.

Os pesquisadores liderados por Ugail tentaram superar essa limitação com uma técnica chamada aumento de dados, na qual cada informação é fracionada e então embaralhada, para gerar novos dados.

Ainda assim, considerando a margem de erro da conclusão do modelo de inteligência artificial, existe a possibilidade de que o veredito da máquina seja impreciso ou incorreto. Daí entra a participação humana.

Existem características físicas e químicas que a IA pode não detectar, como o pigmento presente no quadro. “Pode ser proveniente de uma tinta não usada em determinado período histórico”, diz o galerista Gomide.

“O autenticador observa a madeira do chassi da tela, o tecido, se era linho ou algodão de trama grossa ou fina”, exemplifica o especialista.

Além disso, há o conhecimento histórico de quando um assistente chegou e deixou o ateliê. “O trabalho de um discípulo em um cenário pode influenciar toda a obra.”

Outra técnica comum é avaliar a composição dos elementos e características anatômicas dos personagens. “Uma maçã pintada por Cézanne tem suas peculiaridades”, afirma o galerista.

Nesse processo, o trabalho humano se assemelha ao da máquina.

Beiguelman, da FAU, lembra do historiador da arte italiano Carlo Ginzburg que avaliava a anatomia das orelhas retratadas em telas, sob inspiração do detetive fictício Sherlock Holmes.

“Muitos começaram a entender o valor de combinar análise científica usando ferramentas de IA com expertise histórica e estilística”, diz Ugail, da Northwestern University.

Para o professor inglês, a legitimidade da IA nesse campo crescerá à medida que a precisão e utilidade forem comprovadas em estudos de caso bem-sucedidos.

Gomide afirma que 99% das falsificações são grosseiras. “A tecnologia pode fazer a diferença no 1% restante.”

Visto primeiro na Folha de São Paulo

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