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Brasileiro desafiou Microsoft e virou símbolo no exterior – 11/01/2024 – Tec

O Brasil é citado por intelectuais críticos às big techs (gigantes de tecnologia como Google e Meta) como um país historicamente mais resistente ao lobby desses gigantes corporativos que os Estados Unidos.

Na base dessa imagem estão legislações de proteção de dados, a discussão do PL das fake news e também a história de um funcionário público do primeiro governo Lula que desafiou a Microsoft —companhia que, nesta quinta, ultrapassou a Apple e se transformou na empresa de maior valor no mundo.

O personagem muitas vezes citado por especialistas é Sergio Amadeu, que entre 2003 e 2005 presidiu o órgão responsável pelos processos de certificação digital do governo, o ITI (Insituto Nacional de Tecnologia da Informação), ligado à Casa Civil. Professor da UFABC (Universidade Federal do ABC, em São Paulo), ele não participa do atual governo.

Amadeu recusou, em 2004, licenças de uma versão limitada do Windows oferecidas pela Microsoft ao programa social PC Conectado, que visava facilitar o acesso a computadores para a classe média baixa.

“Disse não porque a Microsoft tem o modelo de negócio de um traficante de drogas: eles só dão a primeira dose de graça; depois que a pessoa está viciada, cobram uma fortuna”, conta Amadeu.

Declaração similar feita por ele em 2004 à revista Carta Capital acabou lhe rendendo uma notificação judicial com pedido de explicações, movida pela corporação americana.

A repercussão foi tamanha que a história acabou em grandes jornais estrangeiros como o New York Times e chegou a intelectuais americanos críticos do monopólio da tecnologia.

O legado do trabalho de Amadeu no início dos anos 2000 ultrapassa, porém, a polêmica do PC Conectado. O então presidente do ITI incentivou a adoção do sistema operacional gratuito e aberto Linux e consolidou as bases para a adoção de programas com licença livre pelo Estado brasileiro, no que veio a ser chamado de software público.

Esses programas permitem, em sua licença, a execução, modificação e distribuição de cópias livremente.

O sistema que hoje faz o Pix funcionar, por exemplo, usou código aberto e roda em computadores com Linux. O navegador Mozilla Firefox, o editor de sites WordPress e a linguagem de programação Python são alguns dos softwares de código aberto que podem ser editados e usados por quem quiser.

O software público começou a ser adotado no ITI e no Serpro, empresa pública de tecnologia da informação que desenvolve os sistemas usados pelo governo federal.

“Naquela altura, a gente estava atrasado, porque quem trabalha com programação em geral usa software livre e 66% do pessoal do Serpro ainda estava no Windows”, diz Amadeu. “A Nasa não vai colocar software proprietário em uma espaçonave, porque não há nem controle nem segurança para isso”, acrescenta.

Para evitar o acesso de grandes empresas aos dados da presidência dos EUA, a Casa Branca também não usa softwares proprietários.

Esse debate voltou a ganhar relevância com a consolidação das seis empresas trilionárias que comandam o mercado de tecnologia: Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft, Meta e Nvidia. Todas são americanas.

O escritor Cory Doctorow, autor do recente “The Internet Con: How to Seize the Means of Computation” (ainda sem tradução para o português), vê na atitude de Amadeu uma evidência de que o Brasil tem funcionários públicos capazes de resistir ao lobby das big techs.

“Os brasileiros devem estar atentos e exigir que legisladores resistam ao bullying tecnológico-imperialista e insistam em soluções tecnológicas localmente apropriadas”, afirmou Doctorow.

O escritor Douglas Rushkoff —que veio ao Brasil na série de conferências Fronteiras do Pensamento— mencionou a defesa de Amadeu pelo desenvolvimento de tecnologias locais como contraponto às tentativas de países em desenvolvimento de copiar o modelo americano.

“Há outros caminhos além do capital de risco para fazer tecnologia. Esse caminho vai explorar as pessoas, deixar poucos empregados e gerar infelicidade; além do que, essas empresas não devem conseguir competir com as empresas norte-americanas”, disse.

Os planos da equipe do ITI, contudo, encontraram resistência de multinacionais de tecnologia e membros do próprio governo Lula.

Segundo Amadeu, a oposição de Antonio Palocci (Fazenda) e Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) impediu que a política de software público se tornasse lei ou decreto.

“Era para ter sido um decreto interno determinando o uso de software livre, o que faria Tribunal de Contas seguir essa lógica”, diz Amadeu. “Furlan e Palocci sabiam disso e não deixaram aprovar internamente de jeito nenhum.”

A solução foi baixar uma portaria que priorizava “licenças permissivas de uso” —solução legal proposta por Ronaldo Lemos, colunista da Folha que, à época, dirigia a entidade Creative Commons, cujo objetivo era encontrar alternativas aos direitos autorais para baratear o acesso ao conhecimento.

“Era como se a gente fizesse uma dobradinha; como professor de direito eu criei as bases jurídicas para que o software livre pudesse ser usado na administração pública”, diz Lemos.

O gestor que quisesse usar softwares pagos podia recusar a recomendação, desde que apresentasse os motivos técnicos para tal.

As críticas à gestão do ITI ganharam mais projeção junto ao público quando a equipe de Amadeu fez pressão para que as máquinas do PC Conectado priorizassem softwares livres, como o sistema operacional Linux e o Libre Office —uma alternativa ao pacote Office da Microsoft. Esses programas são gratuitos, mas têm uma curva de aprendizado mais difícil.

Na concorrência, a companhia americana oferecia licenças para o Windows Essentials —versão limitada do Windows que incluía acesso a email, ao Microsoft Messenger e ferramentas de blog e controle parental. As licenças seriam gratuitas, mas o sistema operacional não oferecia suporte para uma série de programas e indicava a instalação de uma licença paga do Windows.

Todas as esferas de governo e a área educacional representavam 6% dos negócios da Microsoft no Brasil.

Como a oferta foi recusada por Amadeu, a empresa fundada pelo bilionário Bill Gates, além de notificá-lo judicialmente, disse à imprensa: “Oferecemos bilhões de dólares em software gratuito para os brasileiros e esse burocrata disse não”.

Procurado pela Folha, o então presidente da Microsoft Brasil, Emílio Umeoka, se recusou a comentar o caso por ter saído da Microsoft há mais de 15 anos.

À época, ele criticou a decisão do presidente do ITI de dar preferência ao software livre. “A postura de Amadeu é ideológica, no sentido de que só tem uma solução para todas as soluções”, disse Umeoka em entrevista em 2004.

No mesmo ano, o ex-presidente da Microsoft avaliou que o Brasil não teria condições de manter um modelo de exportações vendendo software livre, já que o produto não cria receita para o desenvolvedor.

Em abril de 2005, o ministro Luiz Fernando Furlan culpou os defensores do software livre pelo atraso no lançamento do PC Conectado, previsto para 2004. “Parece estranho que um país que avança como está avançando hoje na produção de software possa discriminar o software proprietário”, disse Furlan em entrevista de 2005 ao Valor Econômico.

Procurado pela reportagem, o ex-ministro não quis comentar o assunto.

O programa acabou saindo do papel em 26 de junho de 2005, com financiamentos a juros subsidiado de computadores de R$ 1.400, equipados com softwares livres.

Amadeu, entretanto, não resistiu à contenda e renunciou à presidência do ITI naquele mesmo mês, em carta entregue a Dilma Rousseff, que havia assumido a Casa Civil no lugar de José Dirceu.

A saída de Amadeu do ITI foi confirmada em agosto de 2005 e a política do software livre foi desarticulada.

Lemos diz, de um lado, que o trabalho com código aberto continuou nos bastidores do governo e na sociedade civil, com menos projeção. “Hoje, o software livre é muito maior do que jamais foi.”

Ele cita o GitHub, repositório de códigos abertos. Essa plataforma ficou tão grande que a Microsoft decidiu comprá-la sob o compromisso de manter o livre acesso ao público.

Hoje, o debate está centrado nos dados abertos e na comunicação entre plataformas —a interoperabilidade, de acordo com Lemos.

De outro, Amadeu afirma que grande parte dos sistemas do governo brasileiro é desenvolvida em parceria com multinacionais.

Ele cita o aplicativo SouGov.br, que reúne vários serviços do governo em uma plataforma baseada no chatbot Watson da IBM. “Os termos de uso do SouGov.br permitem que a IBM capture os dados dos brasileiros e dor servidores federais para treinar inteligências artificiais”, diz.

“A Agência Nacional de Proteção de Dados nem se digna a analisar a hospedagem de dados de membros do governo em um país com legislação incompatível com a LGPD”, acrescenta Amadeu. A IBM processa as informações que coleta em datacenters nos Estados Unidos, onde não há legislação de proteção de dados.

Visto primeiro na Folha de São Paulo

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