“Bostificação” é o conceito cunhado pelo escritor canadense Cory Doctorow para se referir ao estado atual das big techs, as companhias gigantes de tecnologia —Apple, Amazon, Microsoft, Alphabet (Google) e Meta (Facebook).
Doctorow pescou o neologismo —”enshittification”, em inglês— de um tuíte e criou uma definição: antes de se referir à piora recorrente dos serviços baseados em tecnologia, a palavra diz respeito a como as big techs tornaram seus consumidores reféns, em uma relação desigual pautada pelo jogo de influência sobre governos.
“A regulação, do jeito que está, proíbe as pessoas de se defenderem”, afirma o formulador.
Jornalista de formação e pesquisador na reconhecida entidade por direitos na internet Eletronic Frontier Foundation, Doctorow afirma que o atual arranjo econômico e institucional é leniente com os monopólios, já que as leis contra práticas anticoncorrenciais deixaram de funcionar.
De um lado, essa arbitrariedade na economia digital é ainda pior pela disparidade técnica entre empresas e seus empregados e consumidores. De outro, a própria tecnologia pode desbaratar os monopólios a partir do que ele chama de “interoperabilidade” —a capacidade de não só transportar fotos, textos e amigos mas também interagir entre plataformas, como em um serviço de email.
Da cidade canadense de Victoria, ele conversou com a Folha a partir do aplicativo Signal, concorrente menos popular do WhatsApp, conhecido por entusiastas da tecnologia pela segurança contra vazamentos e pelo respeito aos dados do usuário. Adepto do sistema operacional sem proprietário Linux, ele não usa os programas de propriedade intelectual da Microsoft, como o Teams, de videoconferências.
A expressão “enshittification” [bostificação em tradução livre] nasceu no Twitter, mas o sr. mudou o significado desse conceito quando o concebeu. Pode explicar mais a fundo o que é a tal bostificação?
A ideia de bostificação é a de que existe uma maneira única pela qual as plataformas tecnológicas se deterioram, sob nossas condições econômicas atuais. Isso começa quando a internet passa a abrigar sua forma mais difundida de negócio: a plataforma.
A Uber, por exemplo, tem motoristas e passageiros, a Amazon tem compradores e vendedores e o Google tem buscadores e anunciantes. É um negócio que fica entre os usuários finais e os clientes empresariais.
Nos tornamos muito intermediados porque em todo o mundo, mas especialmente nos Estados Unidos, tivemos um período de 40 anos em que fomos cada vez mais tolerantes com os monopólios.
Existem leis nos Estados Unidos que proíbem as empresas de comprar pequenos concorrentes para impedi-los de se tornarem grandes. Também existem leis rigorosas que impedem a fusão de empresas muito grandes. Existem leis que proíbem uma série de táticas anticompetitivas. Simplesmente, paramos de aplicar essas leis.
Isso não é exclusivo da tecnologia. Todos os setores se concentraram muito por causa disso. Duas empresas controlam a maioria das cervejas do mundo. Três empresas fazem a maior parte do transporte marítimo do mundo. Existem cinco grandes editoras, e assim por diante.
Como as empresas se beneficiam disso?
Os monopólios podem capturar seus reguladores, porque, quando as indústrias são diversas, é difícil que concordem em certos tópicos. Mesmo que elas possam chegar a um acordo, quando as indústrias são diversas, elas competem entre si. Cada empresa tem menos lucros. Isso significa que elas têm menos dinheiro para gastar fazendo lobby no governo.
O que é exclusivo da tecnologia é a flexibilidade possível com a lógica digital dos computadores. Isso significa que a forma como o serviço de um motorista de Uber é oferecido varia de minuto a minuto.
Assim, a Uber oferece salários maiores para motoristas mais exigentes, e menores para os que aceitam qualquer oferta. Porque a indústria capturou seus reguladores, pode usar essa flexibilidade para fazer coisas que seriam ilegais de outra forma: pode violar a lei trabalhista, pode violar a lei de privacidade e pode violar as leis do consumidor que nos protegem de ser ludibriados.
É nisso que a bostificação é diferente. Por ser digital, a empresa de tecnologia pode roubar de seus trabalhadores, roubar de seus clientes e fazer mal para o mundo, muito mais rápido do que qualquer outro setor. Como está tudo concentrado, ninguém impede que isso aconteça.
Parece um caminho sem saída.
Por outro lado, a tecnologia também é diferente porque, em hipótese, todos esses recursos técnicos poderiam funcionar para as pessoas que são abusadas por empresas de tecnologia.
Os trabalhadores poderiam ter um contra-algoritmo que tentasse adivinhar quando o salário iria cair no Uber e recusaria as corridas para impedir que o algoritmo os tratasse como não importantes e cortasse seus salários.
Poderíamos ter bloqueadores de anúncios em aplicativos que nos impedem de sermos espionados pelas plataformas. Poderíamos ter ferramentas de interoperabilidade que nos permitam levar nossas bibliotecas de mídia de uma plataforma para outra ou sair de uma plataforma de mídia social como Twitter, Facebook, Instagram ou TikTok.
Mesmo quando formos para um lugar que preze mais pela privacidade, ainda poderíamos ler todos os feeds que costumávamos ler, poderíamos responder a todas as pessoas com quem costumávamos responder e faríamos parte das comunidades que nos importam. Não precisaríamos deixar para trás todas as coisas boas dessas plataformas para escapar das coisas ruins.
O fato de que a tecnologia é concentrada e pode capturar seus reguladores possibilitou que os empresários tornassem todos esses atos de resistência ilegais. Não é que não tenhamos regulação de tecnologia, mas a única regulação de tecnologia que temos é a regulação que proíbe os usuários de se defenderem com tecnologia.
Nesse sentido, regulamentações e processos antitruste como estamos vendo agora não seriam suficientes?
Os processos antitruste são muito importantes porque enviam uma mensagem para a indústria de que, caso essas empresas se envolvam em práticas anticompetitivas, podem acabar em um processo longo, caro e traumático.
Camus escreveu que às vezes é preciso executar um almirante para encorajar os outros. Ao arrastar as grandes empresas de tecnologia por essa experiência traumática, vamos enviar uma mensagem para todos. Mas fazer com que essas empresas de tecnologia sejam melhores, reverter essas décadas de negligência que tivemos vai exigir outros remédios.
Todas essas empresas de tecnologia trabalham com o modelo financeiro de capital semente, ofertas públicas, distribuição de dividendos para seus acionistas etc. Esse modelo financeiro move as engrenagens da bostificação?
Não digo que as empresas não devem ganhar dinheiro. Elas vão ter que competir.
Por exemplo, antes da divisão da AT&T, havia muitos nacionalistas americanos que diziam: “Não podemos dividir a AT&T. Eles estão mantendo a América forte contra esse país beligerante asiático que rouba toda a nossa propriedade intelectual, é autoritário e plagiador”. Esse país era o Japão e agora é a China, a retórica é a mesma.
Isso é o que Nick Clegg, que recebe milhões todos os anos para falar em nome do Facebook, diz sobre sua empresa: o Facebook defende a Europa da China. Não teremos ciberespaço europeu sem a defesa do Facebook.
Porém o que descobrimos quando dividimos a AT&T, em 1992, foi que o objetivo desse monopólio era impedir que as empresas de tecnologia americanas criassem serviços de rede que usassem modens, porque esses equipamentos tiravam o controle da rede das mãos da AT&T.
Por exemplo, identificador de chamadas costumava custar US$ 2,99 por mês, porque a AT&T decidiu que era esse o preço. Agora, é impossível cobrar pelo identificador de chamadas com a popularização da internet.
Hoje não é mais difícil dividir empresas dessa forma?
A América é uma nação muito mais forte e poderosa do que era nos dias da AT&T. Grande parte disso tem a ver com como a internet se tornou uma forma de os EUA projetarem seu poder sobre empresas em todo o mundo.
Está equivocado, portanto, o argumento de que precisamos permitir que os monopolistas estruturem a economia, em uma espécie de comunismo de mercado onde, em vez de o comitê central decidir como a economia será estruturada, há o monopólio decidindo como a economia será estruturada, sem fingir preocupações com o interesse público. É assim que mantemos o mercado acorrentado a essas grandes empresas.
Além disso, porque essas empresas são tão grandes, os reguladores têm dificuldade em regulá-las. Isso significa que temos de tornar os reguladores muito maiores e mais poderosos para dar a eles a capacidade necessária para regular essas empresas.
Essas grandes empresas de tecnologia são empresas globais. As pessoas do chamado Sul Global, os países não ricos, acabam mais vulneráveis a abusos dessas plataformas porque não podem pressionar da mesma forma que os americanos?
Claramente, essas empresas gostariam de influenciar os brasileiros. Mas lembrem-se, por exemplo, do caso de Sérgio Amadeu, ex-coordenador-geral do Governo Eletrônico da Prefeitura de São Paulo durante a gestão Marta Suplicy, que negou licenças gratuitas de Windows.
A Microsoft, então, foi à imprensa e disse: “Oferecemos bilhões de dólares em software gratuito para os brasileiros e esse burocrata disse não”.
Sérgio Amadeu respondeu: “A razão pela qual eu disse não é que a Microsoft tem o modelo de negócio de traficante de drogas. Eles só dão a primeira dose de graça. Depois que você está viciado, eles cobram uma fortuna”.
O Brasil tem funcionários públicos capazes de resistir ao lobby. Mas isso não significa que eles estejam sempre garantidos no poder. Isso apenas significa que os brasileiros devem estar atentos ao tipo de serviço público que têm e exigir funcionários públicos e legisladores que resistam ao bullying tecnológico-imperialista e insistam em soluções tecnológicas localmente apropriadas. Mesmo não tendo a capacidade de dividir o Google, como têm os Estados Unidos.
Em seus artigos, a publicidade aparece como uma parte importante da deterioração recente da internet. Porém, Google e Meta dizem que o público prefere ter serviços gratuitos e anúncios em vez de pagar taxas e assinaturas. Essa atitude de consumo impulsiona a bostificação?
A maioria das pessoas, de fato, prefere coisas de graça a ter de pagar por elas. Mas é falso o argumento de que o único modelo de publicidade que podemos ter é esse construído sob essa vigilância máxima e a monopolização que vem com ela.
Quando comparamos a publicidade de vigilância com o que é chamado de publicidade contextual, em que o anúncio é colocado com base no conteúdo da página, vemos que a vigilância melhora o desempenho em apenas cerca de 5%.
Mas os anúncios contextuais são muito mais baratos de oferecer do que os direcionados. Além disso, mais competidores podem fornecer esse serviço. O Google, por exemplo, ganha dinheiro com escala.
Em um de seus ensaios, o sr. criticou a chamada economia da atenção [a disputa pelo tempo escasso das pessoas em busca de lucros]. Pode explicar o motivo dessa crítica?
A economia da atenção é uma daquelas palavras da moda que não significam nada. Quando as pessoas falam da economia da atenção, se referem à moeda das coisas que podem comprar, vender, negociar.
É preciso perguntar onde essa moeda circula? Qual é a venda dessa moeda? Como é regulada a oferta? O que as pessoas buscam?
A ideia de atenção como moeda é muito parecida com criptomoeda, ou seja, não vale nada. É impossível comprar ou vender usando atenção. O primeiro passo é converter isso em dinheiro.
Por isso, na verdade, não há uma economia de atenção. Há uma economia de dinheiro. Às vezes, você converte atenção em dinheiro, mas nem sempre.
RAIO-X
Cory Doctorow, 52
É escritor, jornalista e hackativista. Autor de mais de 20 livros, sendo o mais recente o manifesto contra as big techs “Internet Con: How To Seize The Mans Of Computation”. Cunhou o conceito de “enshittification”: comportamento recorrente das empresas de tecnologia de oferecer uma inovação que gera bem-estar social, para depois piorar os serviços com intuito de obter lucro, antes de, por fim, acabar em razão da própria debilidade.