A onda de nostalgia que tomou conta da linha de produtos da Nestlé é acompanhada em parte por uma aposta na tecnologia para educar crianças sobre o caminho do cacau até o chocolate e promover um renascimento da fruta no país.
Nas últimas semanas, a marca passou a vender a bolacha Passatempo com nova receita que promete resgatar o “sabor da infância”. Em janeiro, foi a vez do revival do chocolate Surpresa, sucesso nos anos 1980 e 1990, seguindo a tendência de marketing nostálgico de diversos segmentos.
O retorno no segundo caso veio com uma virada agridoce. Os cartões estampados, antes incluídos na embalagem, deram lugar a um QR code que leva o consumidor ao chamado “Mundo Surpresa”, um jogo da marca dentro da plataforma Roblox, febre entre as crianças.
Os tempos são outros, e a escolha do Roblox não foi por acaso. A plataforma reúne milhões de games criados por amadores, desenvolvedores independentes e, cada vez mais, empresas.
No quarto trimestre de 2024, esse mundo virtual registrou 85,3 milhões de jogadores diários e 2,8 milhões de criadores —só na Play Store, de Android, são mais de 1 bilhão de downloads.
Esses números levaram à plataforma um cenário criativo vibrante que abrange desde criações simples até versões de bolso de gêneros complexos de videogames —aí entram jogos de ação, plataforma, sobrevivência, corrida, simuladores etc.
Como os gráficos são simples, também há a vantagem de ser leve quando comparado ao Fortnite —game que também virou uma central de outros jogos nos últimos anos— rodando com facilidade na maioria dos celulares modernos.
No título da Nestlé, desenvolvido pelo estúdio Rogue Unit, o jogador é responsável por uma fazenda de cacau, e aprende no caminho sobre agricultura regenerativa e preservação da natureza.
As missões ensinam, por exemplo, como a fruta pode ser cultivada de forma sustentável, e o usuário chega a ser acompanhado por três animais entre os 15 que estampam em alto-relevo o chocolate Surpresa.
A concepção e o desenvolvimento do game levaram cerca de dois anos, e envolveu um estudo das etapas do plantio do cacau e visitas a plantações no Espírito Santo, onde também estão localizados o estúdio e a fábrica da Garoto, controlada pela Nestlé. A ideia, segundo Filipe Lucas, diretor da Rogue Unit, era evitar que o jogo fosse apenas um simulador, dando-lhe também um aspecto lúdico e educativo.
“Visitamos fazendas, entendemos como funciona cada parte da produção, o funcionamento da questão do consórcio [cultivo do cacau em conjunto com outras plantas]”, disse.
“Tem também a parte sustentável, então você não pode usar só a amêndoa e descartar o restante do cacau. Incluímos processamento de lixo, reciclagem, uso correto da água, tudo isso de uma forma lúdica e divertida, e o jogador ganha vantagens ao fazer tudo isso.”
Para a Nestlé, se por um lado a decisão de retirar os cartões estampados das embalagens pode desagradar os nostálgicos, a conexão com os jovens é uma forma de atualizar o produto.
“Quando pensamos na volta do Surpresa, queríamos nos comunicar não só com os millennials que já o conheciam, mas com essa nova geração. Foi aí que nasceu a ideia de combinar o chocolate com o virtual, um território superforte para a geração Z”, disse Camila Hadaya, gerente de marketing para chocolates da Nestlé.
Segundo Hadaya, a decisão de retirar os cartões não teve a ver com custos de impressão, e ela não vê a aposta no digital como uma forma de incentivar o uso da tecnologia pelos mais novos.
“Dentro dessa estratégia de conectar com os mais jovens, definimos que entrar nesse universo digital seria uma aposta. Então nós não temos outros games, não é algo em que a Nestlé investe massivamente, não é algo que a gente influencia os jovens a ficarem cada vez mais utilizando. É um primeiro exercício, um primeiro contato que a gente está tendo até para ter um aprendizado também junto com esse novo mundo do digital”, disse.
Até agora, o “Mundo Surpresa” foi acessado por 12,8 mil jogadores, segundo o site do jogo, e favoritado por mais de 400. Segundo a Nestlé, são cerca de 800 usuários por dia com uma sessão média de 12 minutos.
A aposta no virtual segue a tendência de outras empresas e integra uma estratégia mais ampla da Nestlé sob o chamado Cocoa Plan, programa que trabalha o desenvolvimento social, ambiental e econômico através do cacau em oito estados brasileiros.
O programa apoia a capacitação e o aumento da produtividade dos mais de 4.000 produtores parceiros e tem o objetivo de alcançar 100% de cacau sustentável em sua cadeia de suprimentos até o final deste ano.
A Folha esteve em uma das fazendas que inspiraram o design do Mundo Surpresa, localizada na zona rural de Linhares (ES), a cerca de 160 quilômetros de Vitória, e considerada um modelo para o Nestlé Cocoa Plan.
Dos 60 hectares da Fazenda Nina, administrada por Françoise Burnier, 23 são dedicados ao plantio do cacau, seja a pleno sol ou em consórcio com seringueiras, prática regenerativa que, no Mundo Surpresa e no mundo real, traz vantagens ao agricultor.
Em 2024, a fazenda produziu 400 sacas (60 kg), e para este ano a expectativa é maior devido às melhores condições climáticas. Toda sua produção é voltada ao mercado interno, e a participação do Cocoa Plan não exige exclusividade com a Nestlé.
Hoje, a commodity é cotada a preços recordes após crises nas safras dos principais países produtores, Gana e Costa do Marfim, o que fez o preço do chocolate disparar 12% no Brasil em 2024.