O entusiasmo com inteligência artificial impulsionou as principais rodadas de investimento, com destaque para a oferta pública de US$ 54,5 bilhões (R$ 271 bilhões) da fabricante de chips Arm —sob a promessa de novas soluções voltadas para IA— e o aporte da Microsoft de US$ 13 bilhões (R$ 65 bilhões) na criadora do ChatGPT OpenAI.
No lado sul do mundo, as startups brasileiras vivem uma draga nos investimentos, que desabaram 60% em 2023 em relação a 2022, quando os valores negociados já haviam caído mais de 50% em relação a 2021.
Segundo investidores de risco e empreendedores ouvidos pela reportagem, o cenário é fruto de um choque de realidade após o grande entusiasmo com a economia digital entre 2020 e 2021 e também dos altos juros no exterior.
O patamar da taxa básica de juros americana entre 5,25% e 5,5% é o mais alto registrado em 22 anos e não deve cair antes de maio, pelo que sinalizou o presidente do banco central americano, Jerome Powell.
É o preço do crédito no exterior que dita o acesso a capital das startups brasileiras em estágios mais avançados, em geral, que buscam investimento, prioritariamente, nos Estados Unidos.
Nesse cenário de risco, os investidores procuram apostas mais seguras como títulos atrelados a dívida americana ou ações de empresas consolidadas, como as gigantes da tecnologia, que dispararam em valor de mercado alavancadas pelo frenesi com IA —o principal exemplo é a Nvidia que teve seu valor de mercado mais do que dobrado ao longo do ano passado e, neste ano, chegou à marca dos R$ 2 trilhões.
Em 2023, não houve grande investimento capaz de impulsionar startup alguma ao almejado status de unicórnio, quando a avaliação chega a R$ 5 bilhões.
Uma exceção foi a Pismo, que nunca revelou seu valor de mercado até ser comprada por US$ 1 bilhão (quase R$ 5 bilhões) pela Visa. A empresa, entretanto, não chegou a essa cifra após investimento e, sim, já na aquisição pela operadora de cartão de crédito.
O cenário é bastante diferente de 2020 e 2021 —quando o Brasil ganhou 15 novos unicórnios. São 24 atualmente.
O número de rodadas de investimento também caiu de 1.452 em 2022 para 746 em 2023.
O cenário de escassez é ainda mais acentuado para as startups mais maduras que procuram captar maiores quantias de uma vez só.
Na avaliação do fundador da startup de intermediação de investimentos Bamboo, Felipe Moraes, as duras condições do mercado de capital de risco levaram as startups a se concentrarem em melhorar sua gestão e contabilidade.
“Em uma conversa com investidor hoje, uma das primeiras perguntas é sempre quando será o ‘break even’” —momento em que a empresa passa a ser lucrativa—, diz Moraes.
Com o boom das economias digitais e criativas, em que surgiram novos gigantes como Uber, Spotify, AirBnB, iFood e outros, os investidores perderam horizonte de critérios econômicos básicos e passaram a superestimar se o negócio em avaliação partia de um mercado sem dono e se havia possibilidade do valor explodir —a chamada escalabilidade.
Em um período de juros negativo ou muito baixo em quase todos os países desenvolvidos, os especuladores investiam em diversas startups na expectativa que ao menos um ou duas fossem sucesso.
Como aquele negócio tinha potencial de uma ascenção exponencial, um acerto compensava todos os erros catastróficos de previsão, na lógica então adotada pelos fundos de riscos.
“Eu já vi muita empresa conseguir levantar investimentos milhões de reais sem ter um produto, o negócio do cara era uma planilha de Excel”, afirma o cofundador da Yellow e hoje investidor-anjo, Guilherme Freire.
A Grow, que surgiu da fusão das startups de aluguel de bicicletas e patinetes elétricos Yellow e Grin, teve falência decretada pela Justiça paulista em 2023, após o juiz João de Oliveira Rodrigues Filho, da Primeira Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, considerar que a empresa não tinha condições de honrar seu plano de recuperação judicial.
A startup de mobilidade chegou a levantar mais de US$ 400 milhões (quase R$ 2 bilhões) em investimentos entre 2017 e 2021.
Um dos poucos subsetores da tecnologia que continua a criar expectativas de ganhos exponenciais é a inteligência artificial, segundo os investidores ouvidos pela Folha.
Empreender no desenvolvimento de grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, contudo, requer estrutura de processamento de dados de ponta, em geral concentrada nos Estados Unidos, na China e em alguns países da Europa.
O Brasil ainda começa nessa área da inteligência artificial com anos de atraso em relação aos pioneiros EUA e China.
Para o chefe-executivo da plataforma de dados sobre startups Distrito, Gustavo Gierun, os brasileiros têm como “poder secreto” um grande mercado de falantes de português, um idioma não prioritário para os principais desenvolvedores de IA —Google, Microsoft, OpenAI e outras empresas americanas.
“Podemos ter empresas aqui que façam modelos menos sofisticados no geral, mas que consigam melhores resultados em português brasileiro”, diz.
Ainda assim, a maior parte das empresas daqui deve usar modelos desenvolvidos no exterior para solucionar dores locais e alavancar a produtividade de negócios.
Depois de deixar a Grow, Freire investe em uma plataforma para aplicar IA generativa a gestão de pequenas empresas, a Dolado, mas ainda considera difícil alcançar um ponto em que a nova tecnologia é confiável para o nível profissional. “Por enquanto, ainda tem muita gente vendendo narrativas cativantes, como foi em 2020 e 2021.”
Sem a bonança da IA, as startups correm para mostrar resultado. A plataforma que monitora demissões em empresas de tecnologia no país Layoffs Brasil registrou 227 demissões nos 40 primeiros dias deste ano. 2023 já havia sido marcado por um número recorde de demissões, como mostrou a Folha.
Uma das alternativas para sobreviver a falta de dinheiro em caixa é buscar um comprador. Mesmo que a startup seja incapaz de se sustentar por si, pode oferecer uma solução de interesse de uma empresa maior.
Ao longo de 2023, diversos analistas fizeram o diagnóstico que seria um ano com maior número de fusões e aquisições.
Dados consolidados da Distrito mostram, contudo, que o número de fusões e aquisições na América Latina caiu de 253 em 2022 para 146 em 2023. As empresas brasileiras representam quase 80% desse bolo.
Para Gierun, esse número indica a resiliência das empresas brasileiras no ambiente austero.
Por outro lado, Freire, ex-Grow, avalia que essa queda nas compras é mais uma face da crise das startups.
“Tem muito negócio que não se planeja direito e tenta começar a ajustar o caixa quando tem dinheiro para continuar funcionando por seis meses”, afirma. “Nessa hora, bate o desespero para encontrar um comprador.”
A empresa acaba em um ponto de deterioração tão grave que deixa de ser atrativa.
“Digo isso porque foi o que eu vi acontecer na Grow”, diz Freire. Ele, porém, não quis avaliar os momentos finais da empresa, já que não fazia mais parte da sociedade.
Até setembro de 2023, a plataforma de monitoramento de startups americanas Carta havia detectado a interrupção de atividades de 543 startups, número superior ao registrado em todo o ano de 2022 (467).
“O ecossistema de inovação brasileiro está intimamente ligado ao americano, o cenário aqui deve ser bem parecido”, diz Freire.