Os Estados Unidos são o país que mais regula IA (inteligência artificial) no mundo e isso se dá a partir de legislações estaduais, diz o consultor da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) Gustavo Macedo.
Ao mesmo tempo, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, atua para frear normas mais duras para o controle dessa tecnologia, cuja liderança no mercado é encampada por empresas americanas e chinesas.
Em encontro sobre segurança de IA realizado em novembro na cidade de Bletchley, na Inglaterra, Blinken criticou o texto sobre regulação de IA, ao qual o Parlamento Europeu chegou a um consenso em 9 de dezembro. Isso foi relatado em reportagem do jornal The New York Times e confirmado pela Folha a partir de telegrama diplomático do Itamaraty obtido via Lei de Acesso à Informação.
A regulação europeia que servirá de exemplo para o mundo ainda precisa ser sancionada e deve prever um período de adaptação até o início da vigência.
O argumento de Blinken era a possibilidade das normas europeias prejudicarem as empresas americanas como a criadora do ChatGPT, OpenAI, o Google e a Microsoft, atualmente em uma corrida contra as empresas chinesas.
Depois dos EUA, quem mais regula IA é a China, segundo Macedo. “O fato de ser capitalista ou comunista não significa muita coisa, o fator principal é a competição.”
Cientista político e especialista em relações internacionais, Macedo participa de um grupo de pesquisadores escolhidos pela Unesco para avaliar o estágio de desenvolvimento de inteligência artificial no Brasil.
O país foi escolhido junto a outras três nações do Sul Global (Chile, Marrocos e Senegal) para servir como teste a um grande estudo comparado que deve envolver mais de 50 membros da Unesco em uma nova fase que começa neste ano.
Os resultados brasileiros ainda não foram publicados, mas o país foi selecionado por ter sido considerado um pioneiro na adoção da tecnologia e por ter discutido ainda em 2021 uma estratégia nacional para IA, a Ebia (Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial), do governo, que agora passa por revisão.
Como a Folha mostrou, o Brasil começou a discutir uma regulação de IA ainda antes da Europa, mas o tema segue sob impasse.
“Com relação aos países do G20, o Brasil está ali, um pouco acima da média. Mas, se você olha dentro do G20, os países mais ricos, o Brasil está abaixo da média, mas a gente sempre vai tentar comparar o Brasil com os países mais desenvolvidos porque almejamos o desenvolvimento”, diz Macedo sobre noções que já foram possíveis obter da pesquisa que deve ser publicada nos próximos dias.
Macedo esteve em evento realizado pela Unesco na Eslovênia, no dias 5 e 6 de fevereiro, para discutir questões éticas e políticas relativas à inteligência artificial no início deste mês.
Entre o cabo de guerra realizado entre Estados Unidos e China, os países do Sul Global acabam como os mais prejudicados por não terem independência tecnológica para garantir acesso às aplicações mais recentes e ainda terem de se sujeitar ao tratamento de seus dados por agentes externos.
“Um celular brasileiro tem um aplicativo chinês como o TikTok, um americano como o Instagram, um russo como o Telegram e um sueco como o Spotify”, exemplifica Macedo, que também é professor de relações internacionais no Insper.
“Agora, quantos aplicativos brasileiros vamos ter no celular de um estrangeiro?”, questiona.
Os celulares, a internet e a gestão de dados brasileiros são muito abertos, na avaliação do pesquisador. “O Brasil é um mercado que muitas vezes serve de laboratório para essas plataformas, porque a nossa legislação permite a entrada delas.”
“A China tem proibições com relação a produtos da Meta; nos Estados Unidos, já há, por exemplo, 15 estados que por lei proibiram o TikTok; na Rússia, não é possível utilizar o Messenger ou o WhatsApp e, na Índia, é parecido”, diz.
A legislação europeia de inteligência artificial também deve criar barreiras nesse sentido.
“Essas regiões do mundo que estão mais avançadas em termos de inteligência artificial também estão mais avançadas em termos de regulação para garantir a soberania digital”, afirma Macedo.
Segundo o pesquisador, no Sul Global, existe uma grande preocupação com o acesso à tecnologia como direito econômico para evitar o agravamento das disparidades entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento.
A ministra brasileira da Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, afirmou durante o evento da Unesco na Eslovênia que o debate entre os pares deveria ir além da ética e discutir também formas de descentralizar o controle sobre a inteligência artificial.
“Dessa forma, há a imposição do uso dessa tecnologia, e os menores ficam de mãos atadas: se não houver adoção, o país fica de fora do mercado”, disse Santos.
Essa preocupação também é citada por grupos representantes do desenvolvimento de software no país, como a Abes (Associação Brasileira das Empresas de Software) e a Câmara E-net.
Esses dois grupos, que também representam gigantes da tecnologia no país como Meta e Google, já afirmaram que o Brasil pode acabar com a legislação mais restritiva do mundo caso o Congresso aprove o formato de regulação proposto no projeto de lei nº 2.338, de 2023, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD).
“Regulação não é sinônimo de restrição, é sinônimo de segurança jurídica e de liberdade econômica”, rebate Macedo.
“É normal que algumas pessoas e empresas queiram dominar a narrativa da discussão e colocar como se qualquer tipo de regulação pudesse trazer entraves ao desenvolvimento econômico, quando não é necessariamente isso”, diz.
Macedo, contudo, avalia que a empolgação e a preocupação com inteligência artificial após o lançamento do ChatGPT, reforçadas agora com as dúvidas sobre o uso de IA nas eleições, devem acelerar o debate sobre regulação dessa tecnologia e de plataformas no geral, como no caso do PL das fake news.
“Desde que o ChatGPT foi lançado, passamos a ter 89 projetos de lei que envolvem controle sobre uso de inteligência artificial de forma direta ou indireta e isso envolve a responsabilização das plataformas.”