Fome, desemprego, alta dos preços: os retratos da economia de 2021 na vida real
Ao longo de todo o ano, o g1 e a globo contaram histórias desses brasileiros, que vão além dos dados econômicos. De quem passou – e ainda passa – por sérias dificuldades: desemprego, fome, inflação, renda apertada. Fome, desemprego, alta dos preços: os retratos da economia de 2021 na vida real
O ano vai chegando ao fim com algumas notícias positivas na economia: o desemprego começa a ceder (ainda que lentamente), e o Produto Interno Bruto deve encerrar 2021 em alta (apesar da recessão técnica no terceiro trimestre).
Mas a combinação perversa da queda na renda e da alta da inflação, além do fim do Auxílio Emergencial, fizeram com que, na prática, a economia real, que uma grande parte dos brasileiros vivencia, seja a da fome, da carestia, das dívidas. Da miséria que os números não mostram.
Ao longo de todo o ano, o g1 e a globo contaram histórias desses brasileiros, que vão além dos dados econômicos. De quem passou – e ainda passa – por sérias dificuldades: desemprego, fome, inflação, renda apertada.
Relembre, abaixo, algumas dessas histórias.
‘O que os ricos comem também comemos. Só que estragado’
A fome voltou a ser um drama cotidiano no Brasil. Em casos extremos, pessoas recorrem ao lixo e se alimentam de comida estragada.
Desempregada, Jocasta Batista, 31 anos, é uma das pessoas que aparecem em um vídeo que viralizou nas redes sociais em outubro, mostrando um grupo revirando a caçamba de um caminhão de lixo para conseguir comida. É com o que encontrava na caçamba cheia de sujeira e lama que ela alimentava as 3 filhas.
“Eu pego banana, fruta e carne verde. Eu escaldo, eu como e minhas filhas comem. Danone vencido também”, relatou.
Pessoas buscam comida em caminhão de lixo em Fortaleza
Maria de Lourdes da Silva, 43 anos, também visitava o local todos os dias com o marido e um amigo. Os três tinham emprego antes da pandemia e estavam desempregados.
“Tudo que os ricos comem nós também comemos. Só que estragado. Todo mundo se alimenta aqui, na maioria das vezes, do que sai dos sacos do lixo”, disse Maria de Lourdes.
‘Eu não sei nem te explicar a fome’
Adriana Santos, 47 anos, trabalhava com material reciclável em Palhoça, em Santa Catarina, e viu seu rendimento cair pela metade durante a pandemia.
“Eu não sei nem te explicar [a fome]. Aqui tem bastante gente que passa por essa dificuldade. Agora está bem pouco de materiais recicláveis e se faltam esses objetos, falta comida em casa, falta o alimento. E se a gente não tem doação, o resultado é passar fome, fazer o quê. É bem difícil”, disse.
“Aqui tem bastante gente que passa necessidade”, diz moradora de comunidade de SC
‘Essa comida antes era destinada aos porcos’
Na comunidade Muvuca, em uma das regiões mais pobres de Maceió, capital de Alagoas, não há saneamento básico. Com a fome crescendo, os moradores precisavam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada “lavagem”.
“Essa comida antes era destinada aos porcos, mas agora as pessoas selecionam e trazem para dentro de casa”, conta Williams Tavares, 19 anos, morador da comunidade.
Lixo da comunidade fica jogado e serve de alimento aos porcos – e agora também para as pessoas
Josué Seixas
‘Osso é vendido, e não dado’
Nos açougues, com os altos preços da carne, consumidores recorreram a cortes antes desprezados pela maioria, como ossos de carne e pés e miúdos de galinha. A alta procura também fez com que essas partes encarecessem.
Em Santa Catarina, o Procon chegou a emitir uma recomendação para que os estabelecimentos doassem os ossos e não os vendessem. O comunicado foi feito após um açougue em Florianópolis estampar o cartaz ”Osso é vendido, e não dado” na loja e viralizar nas redes sociais. A mensagem foi retirada após a polêmica.
Comerciante colocou placa com preço do quilo de ossos de boi
Caroline Borges/G1 SC
‘Eu não vou morrer de fome não’
Em São Paulo, do lado de fora do Mercadão Municipal, um flagrante da luta contra a fome: pessoas buscando ossos de carne na caçamba de descarte do mercado.
Josefa Romão, de 55 anos, estava desempregada e ia ao local para tentar garimpar os ossos.
“Vergonha é roubar e ir para a cadeia, eu não vou morrer de fome não”, disse enquanto buscava o alimento em meio ao lixo da caçamba.
Josefa Romão, de 55 anos, pegou ossos de carne da caçamba de descarte do Mercadão, no Centro de SP
Paula Paiva Paulo/G1
‘Estou aguentando a humilhação’
Além da fome, o número de pessoas sem moradia também aumentou de forma dramática no Brasil. O número de famílias que foram despejadas nos últimos 12 meses aumentou 340% no país, segundo levantamento feito por entidades e movimentos sociais que se uniram na “Campanha Despejo Zero”.
Verônica não consegue pagar o aluguel e corre o risco de ser despejada
Reprodução Jornal Nacional
Verônica Juliana Izidoro expõs a fome e a necessidade num cartaz bem grande. O que faltou escrever nele é que, depois de ficar sem emprego, ela também estava devendo o aluguel e correndo o risco de ser despejada.
“Pediram a casa. Estamos assim… Estou pedindo a um e a outro, aguentando a humilhação, né?”, desabafou.
Já despejada de casa, Vania Maria da Silva Souza já teve um bar, onde vendia doces e salgadinhos. Desde abril, vivia na rua, em uma esquina em Fortaleza.
“Eram R$ 500 de aluguel que eu pagava, R$ 60 ou R$ 70 de água. Estava há quatro meses atrasada, e quem é que vai ser dono da casa que vai dar quatro, cinco meses para você morar? Ninguém quer dar”, explicou.
Vania foi despejada e mora nessa esquina, em Fortaleza
Reprodução Jornal Nacional
‘Não estamos morando na rua, estamos morando na calçada’
Em Goiânia, um casal e o filho de 4 anos foram morar em uma calçada, após serem despejados da casa onde viviam. Eles não conseguiram pagar o aluguel, tiveram que sair do imóvel e montaram uma barraca do outro lado da rua.
Para se proteger do sol e também do frio, o box de uma cama virou uma parede e, por cima, foi colocado um cobertor. Embaixo, alguns colchões, roupas e algumas caixas empilhadas.
Família é despejada e passa a morar em calçada de Goiânia, Goiás
Reprodução/TV Anhanguera
Sérgia disse que ver os seus pertences serem jogados na rua a deixou muito triste. Chorando, foi consolada pelo filho.
“Ele disse: ‘Chora não, nós não estamos morando na rua, estamos morando na calçada, meu pai arrumou [uma tenda] para a gente não ficar no sereno’. Ele tem 4 anos, não sabe de nada e fica me amparando, me consolando”, contou Sérgia.
‘Nunca me imaginei vendendo panos’
Apesar de a taxa de desemprego no Brasil estar caindo desde abril, a falta de trabalho ainda atinge 13,5 milhões de pessoas no país e empurra para a informalidade 38 milhões de brasileiros.
Esse é o caso de Daniel Ferreira Matos, de 43 anos. Quando perdeu o emprego de garçom com a chegada da pandemia, ele decidiu se mudar de Varginha, no interior de Minas Gerais, para São Paulo, em busca de uma nova oportunidade.
Mas ele só conseguiu se virar vendendo panos de chão nas ruas da capital paulista. Em seu antigo emprego, ele ganhava R$ 2.500 por mês. Com o novo trabalho se conseguisse vender pelos menos 200 panos de chão, em nove horas de trabalho, ganhava R$ 50 por dia.
“Nunca me imaginei vendendo panos na rua de São Paulo. Só conhecia a cidade pela televisão. Eu me imaginava aqui na cidade fazendo outras coisas, passeando, conhecendo os museus, e não passando esse aperto todo.”
Homem perde emprego na pandemia e passa a vender pano de chão nas ruas de SP
‘Me mandaram embora e eu vim para a rua’
Assim como Matos, o que Laiane Gomes dos Santos, de 21 anos, ganhava vinha das ruas. Com a venda de balas no centro de Belo Horizonte, ela sustentava os dois filhos.
Laiane trabalhava como balconista em uma padaria antes da pandemia e precisou se virar quando perdeu o emprego.
“Com as balas encontrei uma forma de levar o meu sustento. Quando começou a pandemia, me mandaram embora e eu vim para a rua. Foi a única opção que tive. Sou casada, tenho dois filhos e meu esposo também está na luta vendendo bala”, contou.
Jovem de 21 anos sustenta a família vendendo balas nas ruas de Belo Horizonte
‘Quando coloquei o fogo, o galão explodiu’
Com o preço do botijão de gás acima de R$ 100 no país, muitos brasileiros passaram a se arriscar usando álcool para cozinhar, colocando a vida em risco.
Benta Maciel Correa e o marido, Israel Rosa, sofreram queimaduras graves por todo o corpo ao usar álcool para cozinhar em Anápolis (GO). O fogo se espalhou rapidamente e acabou atingido também a sobrinha de Benta de 10 anos, além de parte da casa.
Família sofre queimaduras graves ao cozinhar com álcool, em Anápolis, Goiás
Arquivo Pessoal/Benta Correa
“Era aniversário do meu cunhado, não tinha botijão de gás, só faltava cozinhar o feijão. Meu marido estava com o galão de álcool na mão, quando coloquei o fogo com o papel, o galão explodiu”, disse Benta.
Em outro caso, Geisa Sfanini, de 32 anos, morreu após usar álcool combustível para cozinhar em Osasco (SP). Seu bebê também sofreu queimaduras, mas se recuperou e foi morar com o pai.
Geisa Estefanini, de 32 anos, e o filho Lucas Gabriel, de sete meses
Reprodução/Rede Sociais
‘Tenho que escolher entre o gás e a comida’
Outra alternativa usada pelas famílias para driblar a alta do gás foi o uso do fogão a lenha. Para Maria José, moradora de João Pessoa, na Paraíba, o que já era difícil ficou cada vez pior.
“Tenho que escolher entre o gás e o alimento pros meus filhos pois o custo de vida está muito alto”, afirma.
Maria José recorreu ao fogão a lenha para poder cozinhar após aumento no preço do gás na Paraíba
Reprodução/TV Cabo Branco
‘Mesmo economizando, botijão não dá para dois meses’
Já a recepcionista Nayara Araújo, de 32 anos, deixou de cozinhar todos os dias e tem usado o micro-ondas e o forno elétrico para substituir o botijão de gás. “Hoje eu faço comida para dois dias e guardo na geladeira o que vamos comer no dia seguinte”, contou.
No dia em que a comida era a feita na véspera, a família esquentava as refeições no forno micro-ondas. Além disso, passou a utilizar o forno elétrico quando precisava assar algum alimento.
“Mesmo com essas nossas economias, um botijão não dá para dois meses”, disse a moradora da zona sul do Rio.
Nayara Araújo e os três filhos pequenos; recepcionista ficou desempregada na pandemia e com a inflação alta precisou mudar os hábitos alimentares da família, da compra ao preparo
Arquivo Pessoal
A troca do gás pela energia elétrica só foi viável porque Nayara pagava a chamada Tarifa Social de luz, destinada para famílias de baixa renda.
‘Tem que aumentar preço, mas cliente não tem como pagar’
Quem não contava com o desconto na conta de luz passou apertado. A alta no valor da conta de energia fez a vendedora de quentinhas Marilza Sant’Anna, de 57 anos, pensar em mudar a profissão que segue há mais de 10 anos.
“Está muito caro e, por isso, a gente tem que aumentar o preço da mercadoria, mas o cliente também não tem condição de pagar. Tem sido um transtorno tão grande que eu estou pensando em começar a vender outra coisa que não seja de cozinha”, contou a moradora de Jaboatão dos Guararapes (PE).
Marilza ao lado de clientes em ponto no bairro de Piedade, em Jaboatão dos Guaraapes, antes da pandemia da Covid-19
Marilza Sant’Anna/Acervo pessoal
‘Uso a moto da minha esposa para baratear custo’
Os brasileiros estão pagando cada vez mais para encher o tanque do carro. Em um ano, a alta do etanol chega a 70%, e da gasolina, a 50%.
O pedreiro Eduardo Dutra de Medeiros, 37 anos, teve que reorganizar a rotina para conseguir se locomover em Bagé (RS), cidade com a gasolina mais cara do país. O rearranjo incluiu ir ao supermercado a cada 15 dias, em vez de ir semanalmente, além de criar roteiros mais econômicos e trocar o meio de transporte.
“Antes eu fazia orçamentos de carro, agora eu deixo todos os pedidos para um único dia, traço um caminho sem muitas voltas e ainda uso a moto da minha esposa para baratear meu custo”, diz Medeiros.
Pedreiro Eduardo Dutra de Medeiros precisou fazer adaptações na rotina em razão do aumento no valor do combustível
Arquivo Pessoal/BBC
Além de aderir à moto, Medeiros acrescentou o custo da gasolina ao valor da mão de obra – o que não fazia até então. Por causa disso, teve algumas propostas recusadas pelos clientes.
‘Troquei as quatro rodas pela bicicleta’
No Rio Grande do Norte, um dos estados com a gasolina mais cara do país, moradores substituíram o carro pela bicicleta para driblar a alta dos combustíveis.
Esse é o caso do técnico em informática Bruno Duarte, que fazia um trajeto de 3,5 km até o trabalho diariamente. A decisão foi tomada quando os gastos com o combustível estavam chegando a R$ 500 por mês.
“É uma opção viável para se fazer, trocar o seu transporte de quatro rodas, que tem um alto custo de manutenção, por uma bicicleta. É bem mais prático, bem mais ágil e bem mais saudável”, contou.
Para economizar combustível, motoristas substituem carros por bicicletas no RN
Inter TV Cabugi/Reprodução
‘Só não desisti ainda porque fiz dívidas’
A alta dos combustíveis prejudicou principalmente quem depende deles para trabalhar. Do gasto diário de um motorista de aplicativo, a gasolina representa entre 40% e 50%. E as consequências foram desistência de trabalhar com a atividade ou recusar viagens menos rentáveis.
Para Rosimar Pereira, o lucro ao fim do mês já não dava conforto à família, mas ele não podia se dar ao luxo de largar as corridas.
“Só não desisti ainda porque fiz dívidas durante a pandemia e, sem outro emprego, não consigo pagar. Trabalhar como motorista já foi muito bom, mas hoje o custo é muito alto e a troca valeria a pena”, contou.
Rosimar Pereira, 48, é motorista há 20 anos, mas pensa em desistir da profissão se arrumar outro emprego
Arquivo pessoal
Trabalhando de 10 a 12 horas por dia, Pereira afirmou que os lucros não passam dos R$ 1,5 mil desde que o preço do combustível explodiu.
‘Não tenho mais cartão de crédito’
Sem trabalho, brasileiro se endivida no cartão para fazer supermercado
Com a inflação corroendo a renda, a dificuldade de conseguir emprego e alta dos juros que encarece o crédito, a inadimplência voltou a subir e atinge mais de 60 milhões de brasileiros. Há 3 anos procurando emprego sem sucesso, a aposentada Marli da Silva estava endividada. Os pagamentos em atraso passavam de R$ 7 mil.
“Não tenho mais cartão de crédito. Carne eu compro uma vez ou outra. A inflação está matando, está pegando pesado”, contou.
‘A conta de luz devora todo meu lucro’
A costureira Jane Barros de Souza estava com o cheque especial no negativo em R$ 3 mil, e há vários meses não consegue pagar as contas de água e luz. A sua poupança acabou em 2020. A conta de luz devora todo o lucro, contou a costureira. Ela tinha cinco máquinas de costura na oficina.
“Você trabalha e vê seu dinheiro indo embora sem poder fazer nada”.
Nas 11 horas diárias e nos seis dias por semana que passa na oficina, o sentimento era de impotência. “Todo dia eu mato um leão. Eu quero que chegue trabalho. Chegando trabalho chega dinheiro, demora mas chega”, disse.
Fantástico mostra o impacto da inflação na vida dos brasileiros
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